quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Mãe, saudades sem fim.

SÃO JOSÉ DO EGITO, PE.
O coração de José (Jotinha) Siqueira Tunu, implantado em Clarismundo Praça, na terceira operação de transplante realizada no Brasil, deverá ser reclamado na justiça pela do jovem pernambucano que foi assassinado em São Paulo, num assalto a um posto de gasolina, estando sendo providenciada a viagem do seu irmão mais velho para tratar do assunto na capital paulista.
Esta decisão foi tomada ao meio-dia e meia de ontem, quando a reportagem localizada no Sítio Santana, na casa reservada aos moradores de uma grande propriedade a menos de 100 metros do leito seco do Pajeu, os pais e quatro irmãos de jotinha, antes cumprida a delicada missão de informar a todos, presentes inúmeros vizinhos, a morte o destino dado ao coração de José Siqueira Tunu.
O Sítio Santana pertence ao Município de São José do Egito, e fica a 29 km da sede, embora toda influência econômica da área seja exercida pela cidade de Tuparetama, da qual dista 11 km.
Nesse lugar residem os familiares de Jotinha: Leôncio Sobrinho de Siqueira e sua esposa Maria Inácia Tunu, além dos filhos Inácio, Francisco, Reginaldo e José Eudes - com a ausência definitiva que é motivo das lágrimas que rolam sobre a face de dona Maria Inácia, com a morte do predileto Jotinha, "o filho que eu mais estimava".
ALEGRIA É O PAJEU
Morando numa região onde a alegria só tem vez quando o rio Pajeu toma água, cedendo a condição de longo e sinuoso caminho de areia no verão, situação presente, os familiares do sertanejo pernambucano que teve seu coração traansplantado para Clarismundo Praça, são as próprias imagens de uma região inóspita, vivendo às expensas do trabalho alugado, todos lutando pelo direito de viver, na propriedade de um primo, João Tunu, residente em Tuparetama.
Desde cedo vão se acostumando ao trabalho na agricultura e pecuária e, a exemplo dos irmãos Reginaldo e José Eudes, de onze e de nove anos de idade, respectivamente, Jotinha foi um rapaz dedicado ao trabalho e a família, especialmente a sua mãe, ajudando a todos financeiramente.
O SONHO DE JOTINHA
A imagem diária do trabalho pesado e difícil de ser encontrado, mesmo para quem possui a disposição e capacidade extraordinárias de trabalho como o homem do Sertão, levou Jotinha a pensar numa atividade compensadora, onde pudesse contar com maiores recursos financeiros, para oferecer dias de vida melhores à sua mãe, a quem dedicava atenção especial.
Alfabetizado, conhecedor das quatro operações, começou a pensar e a falar em São Paulo, como o eldorado capaz de realizar o que sonhava. Sua mãe sempre foi contrária a idéia, argumentando que sua pouca idade, 20 anos à época, nascido e criado naquele sítio, sem nenhuma experiência de vida numa grande cidade, acarretariam uma série de problemas que, talvez, Jotinha não pudesse enfrentar.
Finalmente, ele partiu no mês de outubro de 1967, precisamente no dia 18, depois de convencer dona Maria Inácia que as presenças das tias Maria José, Maria Sobrinho, e dos primos Lula, Severino, Inácia, Valdeci, Valdemir, Valdemar, Creusa, Elias, Inácio, Caboclo e José Suprimo, todos ganhando muito dinheiro e vivendo bem em São Paulo, asseguravam um emprego rendoso, o que seria bom até para os que ficavam.
E Jotinha tinha muita razão. Tudo decorreu como imaginara. Chegando em São Paulo arranjou uma colocação num posto de gasolina, onde passou a perceber NCr$ 165,00 por mês, dinheiro que trabalhando, um ano, no Sítio Santana, jamais conseguira.
BOM FILHO
Distante dos seus, aí foi que José Siqueira Tunu provou suas qualidades de trabalhador, bom filho e irmão, jamais esqueceu os que ficavam. Mensalmente enviava dinheiro e presentes. Cogitou em visitar o seu pessoal em junho do ano passado. Depois adiou a viagem para dezembro. Sua última carta, datada de 19 de outubro de 1968, dizia o seguinte: "Mãe, saudades sem fim. Minha querida mãe, é nesta hora de alegria que pego neste feliz lápis e somente para dar minhas notícias. Até o fazer desta fico com saúde, graças ao bom Deus. Mãe, Maria José e Inácia mandam muita lembrança para todos de casa. Mãe, mande dizer se Inácio já casou. Vai 50,00 mil e 2 cortes de pano para pai e Inácio e eu depois mando para mãe e Mocinha e os meninos, que agora não deu tempo, porque Inácio saiu com muita pressa. Mãe, eu recebi a cartinha que José de Tobias trouxe e o Alfinim. Mande dizer quem escrevel aquela carta que Zé de Tobias trouxe, que foi muito boa. Dê um abraço em pai e nos meninos por mim e um beijo em minha mana que é Mocinha. Agora vai as lembranças para meus amigos. Lembranças para Geci e Liquinha e Zezinho e Nelson e Otávio e Manuel Zuza (irmão da minha noiva) e seu Pedro Zuza, e também para o tio Expedito e tio Izídio e tio José Tunu e também para Dalvinha e comandre Joana e pai velho e mãe velha e Bebé e Caboclo e macinha de Otacílio. Lula e Josete manda muita lembrança. Já dar para aborrecer este jornal. Nada mais do seu filho que não lhe esquece. Jotinha Siqueira Tunu".
NOTÍCIAS & DÚVIDAS
Um telegrama vindo de São Paulo, remetido por Maria José, sua tia, dizia: "Jotinha acidentado, está passando mal". Mocinha foi quem apanhou no Correio de Tuparetama, a mensagem. Antevendo o choque que a notícia provocaria em dona Maria nácia, riscou a palavra mal e escreveu "bem". Mesmo assim, desde que leu o telegrama, a genitora de Jotinha não mais se alimentou, nem dormiu, pensando em acontecimento mais grave, o que realmente acontecera, vindo a confirmação da morte pela reportagem. Algumas pessoas da família, a exemplo de Inácio, o mais velho dos irmãos de Jotinha, tinham conhecimento do estado grave de saúde do rapaz, embora não falassem nada em casa, sabedores da verdadeira afeição que lhe dedicava sua mãe.
CORAÇÃO PERTENCE À FAMÍLIA
O coração de José Siqueira Tunu deverá ser tema para muito assunto ainda, porque a família está indignada com o procedimento da equipe médica do professor Euríclides de Jesus Zerbini, responsável pela operação de transplante do órgão para o corpo de Clarismundo Praça, sem autorização. O pai de Jotinha, sr. Leôncio, disse que "nem um dedo consentiria que se retirasse do filho, imaginem o coração, enfatizando: "não queria estar perto". Francisca, uma moça de olhos azuis, muito parecida com o irmão assassinado, foi de opinião que ele "deveria ter sido enterrado como nasceu". Sua mãe, pressionada pelos demais parentes, embora admitisse inicialmente a idéia de doação, acabou concordando com as outras opiniões e perguntou ao repórter como procederia se o caso fosse com um seu parente.
Inácio queria Jotinha no túmulo: "perfeito, não existindo pedido para o consentimento de arrancar o coração do meu irmão". Será o membro da família que viajará para São Paulo com a finalidade de discutir com os demais parentes a maneira de se contratar um advogado para mover a ação competente para indenização do coração de Jotinha, vivo de amor pela sua noiva Corina.
Inácio já cuidava dos documentos para viajar em Junho próximo a São Paulo, desejoso também de conseguir um emprego, a exemplo do irmão morto. Agora, pensa apenas em resolver o caso e voltar para junto dos pais porque "São Paulo não é tão bom como eu pensava".
AUTORIDADES FALAM
O prefeito de São José do Egito, Sr. José Vilela Torreão, declarou que "se o problema presente fosse com uma pessoa de minha família, eu protestaria. Sou a favor das operações de transplante, desde que a medicina determine a morte definitiva. Autorizaria até de um filho meu se a morte estivesse comprovada. Discordo do modo como foi procedida com o nosso conterrâneo da família Tunu".
Já o pároco desta cidade, padre Mário Costalunga, põe dúvidas quanto ao falecimento do doador: "a equipe médica tem interesse no transplante e pode precipitar-se na determinação da morte".
Concorda com esse tipo de intervenção cirúrgica, desde que a morte clínica seja precisada, não achando correta a maneira de agir do pessoal do Hospital das Clínicas de São Paulo ao não consultar os familiares de Jotinha.
Por sua vez o advogado e professor José Rabelo de Vasconcelos é de opinião que a tese da morte cerebral é válida e acredita num acerto médico quanto à morte de José Siqueira Tunu, concordando com os transplantes. Discorda da não consulta à família, sendo de opinião que a mesma deve ser indenizada.
Para a sra. Neuza Menezes, proprietária de um restaurante e mãe de quatro filhos, não havia justificativa que lhe fizesse autorizar a extração de um órgão de filho seu ou parente, não tendo dúvidas em contratar um advogado para processar quem fosse o responsável por uma questão como a do rapaz do Sítio Santana; enquanto dona Josefa Torres da Costa, ainda parente de José Siqueira Tunu, foi taxativa: "se a decisão coubesse a mim, faria a doação de todo o coração e prestaria um grande benefício, ao salvar uma vida".
Reportagem: Souza Pepeu
Fotos: Bony Silva
1º lugar no Prêmio Esso/JC: "Cinquenta Anos de Fundação do Jornal do Commercio" (1969)
Premiação: Viagem à Europa.

Nota de Sérgio Pepeu: O médico Euríclides de Jesus Zerbini foi o responsável pelo primeiro transplante de coração no Brasil. Clarismundo Praça, que recebeu o coração de Jotinha no terceiro procedimento ocorrido no nosso país (06-01-1969), faleceu oitenta e três dias após a cirurgia. Não há registro se foi proposta ação indenizatória por parte da família de Jose Siqueira Tunu.